«O acordo, em lugar de estabilizar a ortografia, desestabilizou-a de forma indecorosa.»
Longe de ser consensual, o acordo ortográfico de 1990 gerou e continua a gerar dúvidas e desacordo de muitos. Nuno Pacheco, autor do livro Acordo Ortográfico: Um Beco com Saída, publicado pela Gradiva, considera que é possível voltar atrás. Uma obra de crónicas que vale a pena ler.
O que significa dizer que o acordo ortográfico é um embuste?
O acordo prometia uma ortografia unificada em todo o espaço da língua portuguesa. E, com esta, a circulação de materiais (livros, documentos, etc.) pelos vários países sem necessidade de adaptação. O que sucedeu? Tal como antes do acordo, continua a haver duas variantes ortográficas, a de Portugal e a do Brasil. E não há materiais «comuns» a circular, porque cada país produz os seus e com a sua própria ortografia. O que mudou com esta mentira, que mais não foi do que a imposição de uma reforma ortográfica em Portugal e também no Brasil (embora menor) a pretexto de um acordo? A qualidade da escrita. Aumentaram os erros, de forma caótica, numa progressão imparável. O acordo, em lugar de estabilizar a ortografia, desestabilizou-a de forma indecorosa. Foi só o que se «ganhou», com esta aventura. Se fosse uma empresa, já teria ido à falência. Como é uma coisa pela qual ninguém se responsabiliza, continua por aí, à deriva e impune.
Considera que o acordo ortográfico é um beco, mas com saída. Que saída é essa?
O acordo só se mantém por inércia. Quatro dos países cujos representantes inicialmente o assinaram, não chegaram a ratificá-lo: Angola, Moçambique, Guiné-Bissau e Timor-Leste. Em Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a imprensa em português usa a ortografia de 1945. No Brasil só parcialmente é aplicado. E em Portugal, onde muitos resistem a aplicá-lo (cidadãos e instituições privadas), reina um caos ortográfico superior ao que existia no final do século dezanove. Além disso, o acordo de 1945 (que acabou por ser uma reforma ortográfica aplicada exclusivamente em Portugal, rejeitada pelo Brasil) continua em vigor, já que a lei que o instituiu não foi revogada; ao passo que o acordo ortográfico de 1990 está assente em resoluções parlamentares e nunca chegou a ser lei. A saída, neste cenário, é simples: reconhecer o erro, denunciar o acordo e avançar para o que devia ter sido feito de início, aceitando-se as variantes ortográficas específicas de cada país como parte integrante do universo da língua portuguesa. E isso não só para Portugal e para o Brasil, como sempre existiu e existe ainda, mas para todos os países de língua portuguesa, fixando-se normas angolanas, moçambicanas, cabo-verdianas, etc.
O que pode encontrar o leitor neste livro?
Composto por crónicas publicadas entre 2007 e 2019 no Público, acrescidas de um texto inédito mais extenso que lhe dá título (precisamente Um beco com saída), procurei que o livro reunisse, com inúmeros exemplos e dados, um conjunto de argumentos que tornam risível a defesa do acordo ortográfico de 1990. Não se trata apenas de opiniões, mas sim de uma variedade de «casos de estudo», que vão dos jornais e revistas à legendagem de filmes, da escrita à oralidade, da etimologia à fonética, que comprovam que um acordo como o que foi gizado desde os anos 1960 e assinado em 1990 em Portugal, com pompa e euforia, não passa de uma miragem impraticável e sem quaisquer benefícios. Ao leitor caberá a prova final, já que material não lhe faltará para que possa ser juiz nesta causa.